São cada vez mais frequentes as notícias sobre encontros inesperados entre humanos e animais silvestres, seja em ambiente urbano ou em áreas com vegetação. A realidade é que tanto pessoas quanto fauna vivem e habitam os mesmos locais. O conceito de coexistência começou a ganhar espaço no debate acadêmico recentemente para compreender melhor não apenas as interações, mas como espécies diferentes, como o Homo sapiens e as demais habitam um mesmo espaço.
O termo “coexistência humano-fauna” é relativamente recente, não sendo encontrado 20 anos atrás, por exemplo. A coexistência é a condição em que ambas as partes envolvidas – pessoas e fauna – podem “existir juntas” de forma sustentável, como descrito pelos estudiosos no tema, Silvio Marchini e Kátia Ferraz, professores da Universidade de São Paulo (USP).
A coexistência não se refere a um encontro ocasional, por exemplo, entre um humano e uma onça na floresta. Mas sim, uma existência de espécies em uma mesma localidade. Para traduzir o conceito e a abordagem recentes, o Fauna News entrevistou a bióloga paraense Iara Ramos, que atua, com sua empresa de estratégia socioambiental e gestão da coexistência, a Coexista, com a questão da coexistência humano-fauna, sobretudo com onças.
Como ela mesma define, sua dedicação está em “entender e provocar mudanças positivas considerando gente e fauna”.
Fauna News – Qual a aplicabilidade na conservação da abordagem da coexistência humano-fauna?
Iara Ramos – A coexistência humano-fauna considera as pessoas e a biodiversidade, olhando para a interação entre esses dois fatores, assumindo que vivemos em um sistema socioecológico. Pessoas e meio ambiente estão interagindo no mesmo espaço, não havendo uma separação entre ambiente natural e ambiente modificado. Ou seja, a abordagem da coexistência vai mapear estratégias de mudança de comportamento humano para melhorar a relação com a fauna, além de considerar, quando necessário, o manejo da fauna para diminuir os danos para as pessoas e, com isso, melhorar essa relação.
Essa abordagem tem uma aplicação na conservação. Muitas vezes, consideramos a conservação de uma determinada espécie somente como o aumento do número de indivíduos dessa espécie. Mas essa pode não ser a melhor estratégia sob o olhar da coexistência. Por exemplo, nas áreas onde trabalho, em Paragominas, no Pará, há uma superpopulação de capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris). Esse aumento exacerbado está sendo prejudicial tanto ambientalmente quanto para as pessoas: a regeneração da floresta é afetada, pois os indivíduos comem todos os brotos, além de haver a questão de transmissão de zoonoses para as pessoas, a possibilidade de colisão veicular, a destruição das produções agrícolas de pequenos produtores, enfim, de diversas questões. É um problema porque, de algum modo, a tolerância às capivaras será comprometida, podendo haver retaliação.
Fauna News – Recentemente, presenciamos um crime contra uma onça-parda (Puma concolor), que foi morta por uma família no Piauí. O caso viralizou, trazendo à discussão a questão da caça. No Amazonas, também chamou a atenção uma família estar criando um filhote de onça-pintada (Panthera onca). Em ambos os casos, há problemas no convívio das pessoas com os animais silvestres – ainda que muita gente tenha se manifestado favoravelmente para que o filhote não fosse apreendido. Como a coexistência humano-fauna pode abordar essas situações?
Iara Ramos – Dentro da coexistência humano-fauna, analisamos não somente o lado ecológico e biológico, mas também o lado das pessoas. Dentro do contexto humano, vai haver motivação, sentimento, comportamento, atitude, enfim, uma série de dimensões humanas que fazem parte da tomada de decisão. Então, a decisão da moça que atirou na onça no Piauí e a decisão daquele senhor de ter uma onça em casa e criá-la como pet foram decisões baseadas em sentimentos, em experiências, em percepções, em atitudes, em norma social. A abordagem da coexistência vai buscar o ponto inicial que direcionou a tais comportamentos, criando estratégias para atuação sobre a mudança de comportamentos.
Nos dois casos, aconteceram comportamentos que foram negativos para a fauna. Além disso, houve interação. Ou seja, foi positivo para as pessoas (as ações geraram bem-estar e satisfação), mas negativo para os animais. Quando olhamos pela ótica da coexistência, ampliamos a reflexão das pessoas no sentido de, o que é bom para ela nem sempre será bom para a fauna. Quem trabalha com coexistência não pode entrar nos julgamentos para não enviesar a discussão. É necessária a prática de empatia para ter um olhar sistêmico e amplo para conseguir atuar no sentido de mudança de comportamento dessas pessoas para obtenção do resultado, que é a melhora na interação para pessoas e para a fauna.
Acho importante comentar, especificamente sobre esses dois casos mencionados, que o aparelhamento institucional e de legislação é muito importante para ter um êxito sobre a pressão contra a biodiversidade, mas não somente isso. No caso da moça que matou a onça, ficou clara a revolta das pessoas com relação ao valor irrisório da multa aplicada, mesmo sendo o que nossa lei prevê. Trabalhar na perspectiva da coexistência é colocar que a onça é um animal importante para o ambiente, que ela não vai atacar uma pessoa se não estiver acuada e com medo, além de pensar estratégias de governança, para que o cenário como um todo mude.
Fauna News – Qual é a relação das pessoas com a caça, no geral, na região Norte – principalmente na maioria das comunidades e municípios pequenos, já que a realidade de Manaus e Belém, por exemplo, deva ser relativamente parecida com a de qualquer outro grande centro urbano?
Iara Ramos – A questão da caça na região Norte é delicada. Não apenas no Norte, mas em todo o mundo há esse histórico muito forte da relação da sociedade humana com a caça. Olhando especificamente para a região Norte, há uma proximidade muito maior entre os humanos e a floresta. Ainda temos um déficit altíssimo de investimentos sociais e de infraestrutura básica, como políticas de educação e saneamento, por exemplo. Esse é um dos motivos que aproxima as pessoas de uma dinâmica mais exploratória sobre a biodiversidade. Ao mesmo tempo que temos uma riqueza gigantesca na floresta, não conseguimos enxergá-la por questões socioeconômicas. Aí, a caça também cresce nesse cenário. Muitos vão caçar para obter a proteína animal em sua alimentação, por não terem condições de comprar.
Há a caça ligada ao cenário tradicional, sendo parte da cultura de alguns povos ribeirinhos de comunidades locais, por exemplo. Há também a caça esportiva, vista como lazer. É um cenário que está começando a mudar na região. Vou simplificar: existe a caça para o autoconsumo na região, envolvendo também a segurança alimentar, que é uma discussão muito ampla, mas o problema começa a surgir quando o comportamento humano oportunista toma conta. Não há a necessidade de consumir a carne de caça, mas estava passando pela estrada, viu um tatu e resolveu levá-lo para consumir. Não há a necessidade de consumo, mas houve a oportunidade. Dentro da visão da coexistência, a caça é assumida como um comportamento humano. Há também a caça como entretenimento, uma dinâmica de grupo, a reunião de pessoas para ir para o mato se divertir caçando. Nosso desafio, hoje, é trabalhar o comportamento oportunístico das pessoas. Então, assumindo essas diversas facetas da caça, conseguimos compreendê-la melhor e tentar chegar a uma solução.
Um grande problema no Norte é que quase todas as pessoas cresceram no contexto da caça, conhecendo algum parente ou alguém que caça. A região Norte teve alguns movimentos econômicos que muitas pessoas de fora vieram para a região (ciclo da borracha, da madeira, expansões) e, para alimentarem-se, caçavam. Hoje, estamos entre a segunda e terceira geração após esses grandes movimentos econômicos. Esse contexto geracional também deve ser levado em consideração. Hoje ainda há muitas comunidades longe de centros urbanos e longe das facilidades que esses locais oferecem, inclusive no contexto alimentar, e a caça acaba ainda sendo um recurso importante para a segurança alimentar. Isso tudo vai além do contexto geracional e de lazer, por exemplo.
Fauna News – A região Norte tem sofrido com a exploração de terras, principalmente com expansão de pastagens de criação. A caça de retaliação ainda é muito frequente na Amazônia?
Iara Ramos – Ainda não existe um levantamento oficial para abates por retaliação de onças, tanto pardas quanto pintadas, na Amazônia. Temos trabalhos importantes pontuais que falam sobre isso. No contexto em que eu trabalho, há uma retirada expressiva dos animais de abates por retaliação, tanto por conflito com animais de produção quanto por medo também. Em uma das análises que fiz durante um ano e meio, houve o abate de dois a três indivíduos por mês. Esse é um número expressivo. Não acredito que isso seja consequência apenas da expansão de terras, pois, se a expansão fosse planejada, estruturada, poderia não ter esse número de abates, por exemplo.
Acredito que tudo é uma questão de como é a execução. Por exemplo, um agropecuarista aprendeu a fazer manejo de pastagem, manejo de engorda dos animais de criação, mas não aprendeu a fazer manejo para diminuir a vulnerabilidade dessa criação para a onça. Não foi ensinado a considerar o contexto biológico do local onde vive para que fosse viável a produção dos animais. Essa é uma questão que ainda precisa avançar muito na discussão, incluindo a biodiversidade na sustentabilidade. Apenas dessa forma é que iremos conseguir que a caça de retaliação diminua, havendo um diálogo amplo, em nível de governança.
Fauna News – Quanto às comunidades ribeirinhas e povos originários, em que a realidade é diferente de comunidades urbanas. Como é a convivência e o entendimento sobre a presença desses animais próximos às pessoas?
Iara Ramos – As comunidades locais são formadas por diversas identidades, como comunidades ribeirinhas, quilombolas, beiradeiras, pequenos produtores rurais, além de povos originários. Apesar de esses povos terem uma visão diferente sobre a coexistência quando comparados a grandes centros urbanos, há um fator comum, quando falo de onças: o medo, a percepção negativa da presença desses grandes felinos. Independentemente de onde eles estejam, há a tendência de achar que os felinos irão atacá-los. A percepção de risco é alta. Além dessas experiências diretas, tem sempre alguém com uma história sobre felinos, que mais servem para aterrorizar, e as informações falsas que começam a circular. Tudo isso é força motriz para alimentar o imaginário de que estes bichos são perigosos e a qualquer momento trarão danos às pessoas.
O papel da abordagem da coexistência é investir em estratégias de existência em diferentes esferas, envolvendo tanto questões humanas, quanto adotando medidas estruturais como a proteção física dos animais de criação, assumindo que vivemos em um ambiente com pessoas, produção, floresta e que precisamos encontrar uma forma de manter tudo ali, por ser um sistema dependente um do outro.

Fauna News – Como a comunicação pode ajudar a trabalhar adequadamente a convivência entre humanos e animais silvestres?
Iara Ramos – A comunicação é fundamental. Devemos desenvolver uma comunicação estratégica para a coexistência. Dentro desse contexto, a comunicação vai desde abordar o público-alvo, com empatia na escuta, até a elaborar a comunicação estratégica no sentido de entender o cenário, através do que está sendo comunicado pelo contexto. Então, se eu vou a uma fazenda, por exemplo, eu vou fazer uma leitura de quais são as demandas daquele produtor. Isso tudo vem pela comunicação. A partir daí, vou averiguar e entender quais são as demandas e comunicar a ele as soluções que ele precisa, de uma forma que ele se sinta motivado a executar ou se engajar naquela solução. Esse é um exemplo de uma comunicação no campo, na prática mesmo.
Junto com isso, faço a parte de comunicação mais ampla, pelas redes sociais, mídias sociais e, a partir daí, também a gente investe em trazer o conceito da coexistência para o grande público, que é super importante. É o que eu faço hoje na Coexista, que é minha empresa: dissemino o conceito e, a partir disso, consigo apoiadores que realmente começam a entender a importância da coexistência dentro do nosso contexto social e ambiental.
Falando no contexto da imprensa, é importante que haja mais notícias positivas em relação a fauna, além do cuidado do uso de termos que não condizem com a realidade. Nos deparamos frequentemente com notícias como “onça atacou gado em X local”, ou “onça matou”. O uso de termos adequados nessas grandes mídias tem o poder de contribuir com um cenário de benefícios para as pessoas e para a fauna. Sem comunicação não existe coexistência.
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